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BRASIL - Carta de Paris: O passado que não passa
Leneide Duarte-Plon, Carta Major
terça-feira 30 de abril de 2019, postado por
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29 de marzo de 2019 - Carta Maior - O golpe de 1964 e a ditadura sobrevivem na violência policial, nos assassinatos impunes e na amnésia que os militares tentam impor.
Nada é mais subversivo e urgente hoje, no Brasil, do que contar o que foi a ditadura inaugurada em 31 de março de 1964.
Há 55 anos, os militares brasileiros estupraram a democracia.
Festejar esta data é negar o terrorismo de Estado implantado a partir daquele dia.
Qualquer tentativa de reescrever a História deve ser repudiada por todos os que sabem o que aconteceu nos 21 anos de ditadura.
O terrorismo de Estado matou ou fez desaparecerem 434 suspeitos de dissidência política e mais de 8.000 indígenas.
Entre 30 e 50 mil pessoas foram torturadas.
No domingo, 24 de março, o Festival de Filmes de Mulheres de Créteil, cidade vizinha de Paris, me convidou para falar sobre a ditadura depois da exibição do filme A torre das donzelas, de Susanna Lira.
É sempre bom ver tantos franceses e brasileiros interessados na história da ditadura. Tínhamos acabado de ouvir depoimentos de algumas das mulheres presas no Presídio Tiradentes, no local chamado Torre das Donzelas. Uma delas é a presidente Dilma Rousseff, que fala como ex-prisioneira política torturada.
Maria do Carmo Ibiapina, presa política, torturada grávida, exilada em Paris durante a ditadura, também debateu com o público. Detalhe: os torturadores sabiam que ela estava grávida. Maria deu um depoimento sobre a prisão no Rio e lembrou algumas de suas co-detentas como Dulce Pandolfi, historiadora que deu um belo e trágico depoimento à Comissão Nacional da Verdade.
O filme de Susanna Lira será exibido em Paris, dia 12 de abril, com a presença da diretora, no Festival do Filme Brasileiro de Paris.
Abaixo, o texto que li, em francês, para abrir o debate com franceses e brasileiros.
Estou hoje aqui para falar como autora de dois livros sobre a ditadura brasileira.
O primeiro, publicado em 2014, Um homem torturado: Nos passos de frei Tito de Alencar, que escrevi com a jornalista Clarisse Meireles, é a reconstituição do engajamento militante de uma das figuras mais trágicas da resistência à ditadura civil-militar brasileira, o frade dominicano Tito de Alencar.
O segundo, A tortura como arma de guerra, da Argélia ao Brasil, publicado em 2016, tem como subtítulo “Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado”. O livro é construído a partir de entrevistas que fiz com o general Paul Aussaresses, o chefe dos esquadrões da morte na Argélia, como também de minhas pesquisas nos arquivos do Ministério da Defesa francês.
Durante todo o regime dos generais, a tortura era negada por todos os representantes do Estado, civis e militares, mas fazia parte do arsenal da ditadura e era o método privilegiado nas sessões de interrogatório dos militantes de esquerda.
No prefácio de Um homem torturado, o filósofo Vladimir Safatle escreveu:
“Frade dominicano, preso e torturado junto com outros religiosos que deram apoio logístico à ALN de Carlos Marighella, Tito sucidou-se anos depois em um convento francês. A tortura havia conseguido quebrá-lo psicologicamente, transformando sua vida posterior em um inferno de delírios e alucinações. Sua história é uma das representações mais bem acabadas do engajamento da esquerda católica na luta contra as ditaduras latino-americanas, engajamento que foi apenas um capítulo da longa história de setores da Igreja Católica em sua aliança com movimentos operários e comunistas no século XX. Na América Latina, solo para o desenvolvimento da teologia da Liberação, tal aliança chegou a levar religiosos, como o colombiano Camilo torres, a entrar diretamente na luta armada”.
Nostálgico da ditadura
Muitos brasileiros se perguntam hoje como depois de uma tão longa ditadura – que gerou tanto sofrimento, tantos mortos e desaparecidos e milhares de exilados – o Brasil pôde eleger no ano passado um ex-militar que formou um governo no qual há mais generais que no governo Castelo Branco, o primeiro ditador da lista de generais que governaram o Brasil a partir de 1964. Todo mundo sabe que este ex-militar é um nostálgico da ditadura.
Penso que a resposta está no fato de que o Brasil não fez um trabalho de memória sobre a ditadura, não julgou nem puniu os responsáveis pela tortura. O país votou em 1979 uma lei de anistia que garantia a impunidade a todos os militares e agentes do Estado responsáveis por crimes contra a humanidade, imprescritíveis, como a tortura e os desaparecimentos.
Clarisse Meireles, co-autora do livro Um homem torturado: Nos passos de frei Tito de Alencar, escreveu um artigo para um jornal brasileiro no qual mostra o verdadeiro trabalho de ocultação da história da ditadura, o que Jacques Derrida chama de “memoricídio”, o assassinato da memória:
“A ditadura não nos roubou apenas 20 anos de democracia. Ela está viva na truculência e na violação sistemática dos direitos humanos na política oficial de segurança, na precariedade da educação e da saúde públicas que só beneficiam grupos privados, na despolitização de parte da população que repete que ‘político é tudo safado’, menosprezando qualquer militância política. E no onipresente sistema audiovisual de discurso único e linguagem infantilizadora.
De todos os destroços deste tempo que sobrevivem nas nossas vidas cotidianas, porém, nenhum me impressiona tanto quanto a nossa própria memória coletiva esburacada.
Só ela pode tolerar que ainda hoje os livros de história adotados nos colégios militares do país chamem o golpe de uma ‘Revolução levada a efeito não por extremistas, mas por grupos moderados, respeitadores da lei e da ordem’. Também é só nossa cegueira coletiva que nos faz continuar a aceitar as atrocidades das polícias militares de hoje, que se beneficiam de eterna impunidade, e não só a partir da Ditadura. Temos que lembrar que a polícia sempre torturou e matou pobres neste país. Durante a Ditadura civil-militar, militantes operários e pequeno-burgueses experimentaram essa mesma truculência em nome de uma “guerra anti-subversiva” e do anticomunismo, quando prisões arbitrárias e tortura se tornaram política de Estado e a imprensa, censurada, era obrigada a se calar.”
No seu prefácio para meu livro A tortura como arma de guerra, da Argélia ao Brasil, Vladimir Safatle cita a socióloga americana Kathryn Sikkink que diz que se tortura mais no Brasil de hoje (em 2016) do que se torturava durante a ditadura.
O amigo mais próximo de Tito de Alencar no último ano de vida no Convento de la Tourette (1974), frei Xavier Plassat, desenvolve, desde 1989, um trabalho pastoral no Estado de Tocantins e coordena a campanha da Comissão Pastoral da Terra contra o trabalho escravo. Ele escreveu em seu belo texto de apresentação da nossa biografia de Tito de Alencar:
“Precisamos escutar, resgatar e honrar com justiça as vozes abafadas e os sonhos dos resistentes e lutadores.
Sem a elucidação constante da verdade, particularmente em relação às sombras mais trágicas da nossa história, tornam-se incompreensíveis e insuperáveis as recorrentes e brutais manifestações de violência, de barbárie, que continuam pontuando o nosso tempo, nos presídios, nas delegacias, nos morros, nas fazendas: a matança de jovens, de posseiros, de negros, de índios, de migrantes, de travestis, de prostitutas ; a comercialização de gente e sua escravização ; a confiscação da esperança, a negação do bem-viver”.
Vladimir Safatle nos encoraja a testemunhar e contar a História:
“A ditadura brasileira foi, até agora, bem-sucedida nessa sua empreitada do esquecimento e, graças a tal sucesso, ela conseguiu, de certa forma, nunca ter terminado. Neste contexto de invisibilidade e esquecimento forçado, o uso da memória é um ato político maior, pois impede que o tempo possa extorquir reconciliações meramente formais”, escreveu o filósofo no prefácio de Um homem torturado.
Ontem como hoje, o Evangelho como álibi
O amigo brasileiro mais próximo de Tito de Alencar no Convento Saint-Jacques, em Paris, Magno Vilela, que deixou a ordem para se casar e vive hoje em São Paulo, nos disse, a Clarisse Meireles e a mim:
“Antes do engajamento ao lado de Marighella, pensávamos que nossa generosidade e a força do Evangelho eram suficientes para transformar a realidade. Percebemos depois que os militares e os outros atores da ditadura pretendiam falar em nome do Evangelho.”
Hoje, muitos dos que tomaram o poder no Brasil com um discurso de ódio e de destruição do adversário, encarado como um inimigo a ser destruído, também se dizem seguidores do Evangelho.
Temos, porém, certeza de que não se trata do mesmo Evangelho da Libertação que estava na origem da ação dos frades dominicanos próximos de Carlos Marighella e que foram vítimas de tortura e exílio.
Muitos brasileiros, como Tito de Alencar, pagaram esse engajamento com suas vidas.
É preciso lembrar que o atual presidente brasileiro disse que o erro dos militares brasileiros foi não ter matado 30 mil “subversivos”, como o regime de Pinochet.
Foi o memoricídio que permitiu aos militares apagar a história do Terrorismo de Estado, que durou de 1964 a 1985.
Este memoricício e esta amnésia foram construídos cuidadosamente pela direita e pelos militares. E a lei da anistia, que nenhum presidente brasileiro pôde revogar, garantiu a impunidade aos torturadores.
E, finalmente, foi a cumplicidade da mídia que neutralizou o fabuloso trabalho da Comissão National da Verdade, cujo relatório foi entregue à ex-torturada e presidenta reeleita Dilma Rousseff no dia 10 de dezembro de 2014.