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LIVRO - BRASIL - Um homem torturado: Nos passos de frei Tito de Alencar, de Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles

quarta-feira 21 de maio de 2014, postado por Dial

Todas as versões desta matéria: [français] [Português do Brasil]

 Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2014
 ISBN: 978-8520012406
 420 p., R$ 48.

Prefácio de Vladimir Safatle [1]

Um homem torturado é a reconstrução da militância de uma das figuras mais trágicas da resistência à ditadura militar: frei Tito. Frade dominicano, preso e torturado junto com outros religiosos que deram apoio logístico à ALN de Carlos Marighella, Tito suicidou-se anos depois em um convento francês. A tortura havia conseguido quebrá-lo psicologicamente, transformando sua vida posterior em um inferno de delírios e alucinações.

Sua história é uma das representações mais bem acabadas do engajamento da esquerda católica na luta contra as ditaduras latino-americanas, engajamento que foi apenas um capítulo da longa história de setores da Igreja Católica em sua aliança com movimentos operários e comunistas no século XX. Na América Latina, solo para o desenvolvimento da teologia da Libertação, tal aliança chegou a levar religiosos, como o colombiano Camilo torres, a entrar diretamente na luta armada. Neste sentido, o livro de Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles é documento importante para o esclarecimento de um processo político fundamental na compreensão da história recente latino-americana. Ele reconstrói contextos históricos esquecidos e distantes, principalmente após a guinada conservadora produzida no interior da Igreja Católica a partir de João Paulo II.

Ao narrar a história de frei Tito a partir de um estudo exaustivo, Leneide e Clarisse fazem, no entanto, mais do que a reconstrução de processos históricos. Em certo momento, elas se lembram desta afirmação feita por um torturador a Tito: “Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis.” Na verdade, tal frase sintetizava de maneira precisa a natureza da violência e da máquina criminosa produzida pela ditadura brasileira. “Fazer as coisas sem deixar marcas visíveis”, ou seja, tirar as marcas da violência da visibilidade pública, apagá-la e, com ela, apagar as histórias que tal violência destruiu. a ditadura brasileira foi, até agora, bem-sucedida nessa sua empreitada e graças a tal sucesso ela conseguiu, de certa forma, nunca ter terminado.

Neste contexto de invisibilidade e esquecimento forçado, o uso da memória é um ato político maior, pois impede que o tempo possa extorquir reconciliações meramente formais. Contra o silêncio, ele coloca novamente em circulação as descrições minuciosas, feitas por Tito, de sua própria tortura. Ele nos faz sentir o tempo desesperado dos torturados políticos, com sua devastação psicológica. Por isto, o lançamento deste livro, no momento em que o Golpe militar completará 50 anos, no mesmo momento em que o Brasil se confronta mais uma vez com a brutalidade da Polícia Militar que a ditadura deixou, com suas torturas e assassinatos, nos ajuda a lembrar como nos acostumamos com um Estado que pratica os piores crimes contra sua população, de onde vem nossa complacência. No entanto, vemos aos poucos os limites desta operação. Aos poucos, volta à luz a presença dos que lutam, na contramão de décadas de recalque, para impedir que a complacência histórica com os criminosos que se apoderaram do poder do Estado seja o capítulo final de nossa história. Muitos são jovens que só agora descobrem a verdadeira face da história de seu país. É para eles, é para nossas escolas, que o livro de Leneide e Clarisse se dirige.


“Honrar com justiça as vozes abafadas” - Xavier Plassat

Ao pisar no Brasil pela primeira vez, em março de 1983, trazendo de volta o corpo do meu irmão frei Tito, resolvi aqui ficar e aqui estou, vivendo as esperanças, as lutas e a fé do Tito com seu povo.

Convivi com frei Tito na comunidade dominicana de L’Arbresle (França). Foram duas primaveras, dois verões, mas um só outono e um só inverno. Ele com seus 27 anos, e eu, meus 23. Ali, surgiu entre nós uma relação feita de cumplicidade e de amizade, de sorrisos e de raivas, de luta e de fé, enfrentando o Fleury: o temido Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delegado do DOPS em São Paulo, um dos principais torturadores do regime militar.

Por dentro do Tito, Fleury continuava sua tortura destruidora,partindo-lhe a alma entre resistência e desistência.

Resistência era quando Tito formava projetos, tocava violão, abraçava o amigo, brincava com a criança, cunhava poesia, rezava, sorria.

Desistência era quando obedecia cegamente à intimação alucinante do “papa”, cuja voz atormentava sua mente sem parar, fugindo para onde mandava que fosse, ou afundando-se em impenetráveis prantos e desesperados silêncios.

Eu tinha observado como ficava feliz ao encontrar meus familiares, meu pai, minha mãe, meus irmãos, minhas irmãs, lá na Auvergne, e ao brincar com meus sobrinhos ou, ainda, com a criançada encontrada na casa de Joseph, nosso vizinho. Ele era operário na fábrica de autopeças da Renault e pequeno viticultor em Saint-Bel. Com ele, eu acompanhava uma equipe da ação Católica Operária e dava alguma força à seção sindical da usina na qual, com a irmã dominicana Jacqueline, ele era um dos delegados eleitos. Tito achava isso muito bom.

Mas o Fleury raramente o deixaria quieto e, nestes meses que compartilhamos, Tito alternaria constantemente entre o entregar-se e o resistir. Era como se estivesse acuado entre as paredes desse novo“corredor polonês”: morrer vivendo, viver morrendo. Cumpria-se alouca promessa que recebera durante as sessões reais de tortura.

Segundo suas próprias palavras, registradas pelos companheiros de sua cela: Quiseram-me deixar dependurado toda a noite no pau de arara. Mas o capitão Albernaz objetou: “Não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver,jamais esquecerá o preço de sua valentia.”

Juntos, viajamos, cantamos, choramos, rezamos, xingamos, desafiamos. Partilhamos do melhor e do pior. O chão que vem e o chão que se vai. Até que um dia de agosto de 1974, na semana de São Domingos, Tito resolveu livrar-se definitivamente do torturador e da loucura que este pretendia infundir-lhe.

Naquele instante possivelmente imaginado de longa data, num último mistério de resistência e de fé, Tito derrubou-lhe a pretensão de poder continuar, dia após dia, roubando a sua vida.

“Melhor morrer que perder a vida. Opção 1: corda (suicídio, Bejuba). Opção 2: tortura prolongada, Bacuri”, estas foram as últimas palavras que Tito rabiscou no papelão que usava como marca-página e que encontrei dias depois.

Entendi assim: Minha vida, ninguém tira, ela é minha. Eu a estou entregando.“Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão”, cantava o povo das CEBs e das ruas, dos acampamentos e das fábricas, na chegada do corpo do Tito na catedral da Sé e, de novo, na de Fortaleza. Com justeza.

Segundo Jean-Claude Rolland, o psiquiatra que, em Lyon, com tremenda lucidez, acompanhou frei Tito no auge do seu tormento,“a barbárie que leva certos homens à prática da tortura contamina automaticamente todos os seus contemporâneos. Ela faz de cada um de nós cúmplices virtuais. Há, no fundo de nós mesmos, muito recalcada, uma capacidade de destruir o outro e o torturador apenas ativa essa capacidade de destruição”.

Daí a centralidade da palavra que rompe o silêncio, da razão que tripudia a barbárie, da memória que acorda da acomodação, da história que, sem fim, deve ser contada.

À globalização da indiferença que vai se alastrando, há quem teime em opor a solidariedade e a compaixão que nascem do senso agudo de uma comum filiação.

Enquanto mais de uma geração já nos distancia dos acontecimentos aí narrados, o livro de Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles chega em boa hora. Em mutirão, mãe e filha foram às fontes, ouvir testemunhas e protagonistas, recolhendo criteriosamente suas palavras e reconstruindo para nós a teia de um drama que teve na pessoa do frei Tito um dos seus desfechos mais emblemáticos.

Elaborar sem trégua este trabalho de verdade e de história é exigência que não acaba. Precisamos desmascarar as conveniências e denunciar as cumplicidades — no mínimo, a covardia — que colaboraram para infernizar e tirar a vida de militantes, irmãos, companheiros que sonhavam com outro país e outro mundo possível, e os destinaram às catacumbas e à morte.

Precisamos escutar, resgatar e honrar com justiça as vozes abafadas e os sonhos dos resistentes e lutadores.

Sem a elucidação constante da verdade, particularmente em relação às sombras mais trágicas da nossa história, tornam-se incompreensíveis e insuperáveis as recorrentes e brutais manifestações de violência, de barbárie, que continuam pontuando nosso tempo, nos presídios, nas delegacias, nos morros, nas fazendas: a matança de jovens, de posseiros, de negros, de índios, de migrantes, de travestis, de prostitutas; a comercialização de gente e sua escravização; a confiscação da esperança; a negação do bem-viver.

Ato de memória insurgente, a leitura deste livro, sem dúvida,alimenta e atualiza em cada um de nós a capacidade de indignação. Mais de 500 anos depois de proferida pelo frei Antônio Montesinos em defesa profética dos indígenas da Ilha da Hispanióla, a ousada advertência da primeira comunidade dominicana das Américas permanece irrecusável: “Estes por acaso não são gente?”

Daí a necessidade e a oportunidade de mais este livro sobre Tito, e sobre todos os Titos.

Fica o evangélico recado, gravado no seu túmulo: “Se os discípulos se calarem, as próprias pedras clamarão!” (Lc 19, 40).

Frère Xavier Plassat, Natal de 2013


Tito de Alencar Lima (Frei) - Frei Beto

Fortaleza (CE), filho caçula de Ildefonso Rodrigues de Lima e Laura de Alencar Lima. Suicidou-se em 10 de agosto de 1974, no exílio, na França. Era frade dominicano. Estudou em Fortaleza com os padres jesuítas. Iniciou sua militância na União Cearense de Estudantes Secundaristas e, a seguir, foi dirigente da Juventude Estudantil Católica (JEC). Em 1965, ingressou na Ordem dos Dominicanos, sendo ordenado sacerdote em 1967. Também foi aluno de Ciências Sociais da USP.

Como militante da Ação Estudantil Católica, foi seu coordenador para a região Nordeste.

Foi preso em 12 de outubro de 1968 sob a acusação de ter alugado o sítio onde teve início o no sítio onde se realizava o XXX Congresso da UNE, em outubro daquele ano, na cidade de lbiúna (SP). Juntamente com Tito foram presos e fichados no Deops mais de 700 estudantes universitários.

Foi preso novamente em 4 de novembro de 1969, em companhia de outros dominicanos acusados de terem ligações com a Ação Libertadora Nacional (ALN) e seu dirigente, Carlos Marighella, assassinado pela equipe do delegado Sérgio P. Fleury, do DOPS/SP, no mesmo dia.

Frei Tito foi torturado durante 40 dias pela equipe de Fleury e, depois, foi transferido para o Presídio Tiradentes, onde permaneceu até 17 de dezembro de 1970 fevereiro de 1970. Nesse dia, foi levado para a sede da Oban (posteriormente reorganizada como DOI-CODI), onde o torturador capitão Maurício Lopes Lima lhe disse ao chegar: “Agora você vai conhecer a sucursal do inferno”. Tito foi torturado no pau-de-arara com choques elétricos em diversas partes do corpo; levou socos, pauladas, “telefones”; enfrentou um “corredor polonês” e foi queimado com cigarros.

Tito foi o primeiro dos frades a ser levado para novos interrogatórios sob tortura porque o dono do sítio de Ibiúna fora preso e os miltares descobriram que fora Tito quem intermediara o empréstimo do local para sediar o Congresso da UNE.

Tentou o suicídio com uma gilete, sendo conduzido ao Hospital Central do Exército, no bairro do Cambuci, onde ficou cerca de uma semana. Com esse ato, evitou que seus confrades voltassem a ser interrogados e torturados no Doi-Codi.

As torturas sofridas por Frei Tito foram relatadas em documento redigido por ele, anexado ao seu caso na CEMDP:

Na quinta-feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão cercado por sua equipe voltou às mesmas perguntas. – Vai ter que falar senão só sai morto daqui – gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram- me na Cadeira do Dragão (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor.

Da sessão de choques, passaram-me ao pau de arara. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais: tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. quando chegou o Capitão Albernaz. Nosso assunto agora é especial, disse o Capitão Albernaz, e ligou os fios em meus membros. Quando venho para a OBAN – disse – deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede. A certa altura, o Capitão Albernaz mandou que eu abrisse a boca para receber “a hóstia sagrada”. Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito.

Banido do país em 13 de janeiro de 1971, com mais 69 presos políticos trocados pelo embaixador suíço seqüestrado, Giovanni Enrico Bucher, foi para o Chile e depois para a Itália e a França. Até junho de 1973, viveu no convento S. Jacques, em Paris, onde tentou retomar seus estudos na Universidade de Sorbonne. Depois, mudou- se para o convento dominicano de Sainte- Marie de la Tourette, em Eveux, província de Lyon. Em 23 de fevereiro de 1973, estando no exílio, foi condenado na 2a Auditoria Militar de São Paulo a um ano e meio de reclusão.

Em 10 de agosto de 1974, enforcou-se em uma árvore do bosque ao redor do convento perto de Villefranche-sur-Saône, conforme foi retratado no filme Batismo de Sangue de Helvécio Ratton, produzido em 2006.

Foi enterrado no cemitério de Sainte Marie de la Tourette.

Em 25 de março de 1983, suas cinzas, ao lado dos restos mortais de Alexandre Vannuchi Leme, foram recebidos na igreja dos Dominicanos, na Catedral da Sé, no bairro de Perdizes em São Paulo (SP), na Catedral da Sé, onde foi realizada uma celebração litúrgica com a presença de D. Paulo Evaristo Arns, em homenagem aos dois.

A seguir, suas cinzas foram enterradas no jazigo da família, em 26 de agosto do mesmo ano, em Fortaleza (CE).

A relatora do caso na CEMDP, Maria Eliane Menezes de Farias, destacou vários registros da participação de Tito de Alencar Lima em atividades políticas, chamando a atenção para as inúmeras brutalidades sofridas que teriam culminado em seu suicídio, demonstrando o nexo causal entre o suicídio e as torturas e perseguições por motivação política, na forma do disposto no art. 4o, I, “d”, da lei 9.140/95.

Ao elaborar seu voto, Maria Eliane Menezes de Farias afirmou que:

[...] a vasta documentação acostada aos autos confirma os fatos quanto à militância política de Tito de Alencar Lima, seu sofrimento e morte, por suicídio, em conseqüência das seqüelas resultantes de atos de tortura praticados por agentes do poder público. Provada a relação de causa e efeito entre a prisão, tortura e posterior desequilíbrio psíquico que levou Frei Tito ao suicídio, reconheço-o como vítima da ditaduramilitar.

O seu caso foi aprovado por unanimidade em 10 de agosto de 2004.

Em sua homenagem, a cidade de Belo Horizonte deu o seu nome a uma rua localizada no bairro Goiânia.

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[1Vladimir Safatle é filósofo, professor livre-docente da Universidade de São Paulo.

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